segunda-feira, abril 11, 2005

Sócrates e o desafio dos transportes

Como será daqui a 4 anos? Aceitam-se apostas

Artigo de opinião retirado do Suplemento "Carga e Transportes" do jornal PÚBLICO de 11.04.05

por: Fernando Veludo /Reis Borges


1.Quem conheça o funcionamento da administração do Estado e não
aprecie o regabofe nas despesas públicas -responsáveis, aliás, pelo
mau desempenho da nossa economia, no contexto europeu e/ou mundial -,
sabe perfeitamente que a contenção orçamentei imposta por Bruxelas não
é mais do que um travão necessário ao desregramento nacional.

A flexibilização ora acordada, para o Plano de Estabilidade e
Crescimento (PEC), constitui uma moratória por forma a que o Governo
Sócrates tenha a legislatura para introduzir reformas radicais,
especialmente nos ministérios da Agricultura, da Educação e da Saúde.
E nos Transportes, também!

Apetece recordar que há uma vintena de anos, procurou-se conhecer o
custo das administrações das empresas públicas de transporte,
reportado a indicadores universais de tráfego. Pretendia-se, então,
comparar o custo apurado com a prática europeia. O pânico instalou-se
no centrão dos interesses, o qual fez passar a mensagem de que o
parlamentar autor do requerimento pretenderia pôr em causa as
nacionalizações... Certo, certo, é que os cidadãos contribuintes - de
então para cá - desperdiçaram milhões e milhões de contos.

Espero que o Governo Sócrates tenha a vontade política e a coragem
suficiente para dar a conhecer aos portugueses os custos de
administração e do pessoal das empresas públicas nacionais. Custos que
devem contemplar todas as remunerações e mordomias, bem como
indemnizações e reformas. Custos que devem ser cotejados com os
despendidos na União Europeia, sendo reportados à produção do
transporte (passageiros e carga movimentados, lugares/km oferecidos,
aviões controlados). O país ficará provavelmente chocado com a crueza
dos números.

Mas o Governo ganhará legitimidade acrescida para dar a volta ao
sistema. É que chegou a hora de utilizar práticas que são comuns na
Europa e não continuar a enganarmo-nos omitindo o que se sabe (há
muito) estar mal É o tempo de todas as decisões. Dos estudos (que não
se realizaram)às obras (com défices de qualidade e segurança). Do
recrutamento humano (em novos moldes) à capacidade técnica e
organizativa dos serviços nacionais.

2.Seria, de resto, extremamente saudável que, antes mesmo de qualquer
dança de cadeiras, dispusesse o Governo dos dados comparativos
apontados, o que lhe permite responder às interrogações que
naturalmente se formulam. Porquê o tipo de administração portuária
existente? Por que não voltar ao director do porto, com um conselho
administrativo constituído por dois funcionários? E não seria o mesmo
para os aeroportos? E as gestoras de infra-estruturas não ficariam bem
servidas com uma administração de três membros em que dois fossem
obrigatoriamente de carreira e que regressassem aos lugares de origem
quando terminada a respectiva comissão de serviço? E às operadoras de
transporte, se dispõem de um CEO, não bastariam dois outros
administradores, umd os quais seria o presidente? E os institutos
públicos, não deveriam passar a administrações a três? Por que bulas o
Ministério das Finanças tem que nomear um administrador? Não será mais
eficaz mobilizar a Inspecção Geral de Finanças, o Tribunal de Contas e
o Conselho Superior de Obras Públicas e Transportes para
inspeccionarem, sistemática, criteriosa e conjuntamente, esses entes
públicos?

O corte de despesa(supérflua)nos transportes será significativo se a
orgânica e o funcionamento do sector forem ajustados a um tempo que só
pode ser de austeridade aplicando-se regras idênticas nos diferentes
modos. O Governo anterior pensou que, adoptando soluções empresariais,
obteria economias estruturais. O que não aconteceu, não obstante
algumas melhorias em resultados de exploração e que derivaram de um
maior empenhamento por parte das respectivas administrações.

3. Um dia, investigadores universitários tentarão explicar a razão
peta qual o Ministério das Obras Públicas e Transportes foi confiado -
nos primeiros anos da Revolução de Abril - aos militares e a partidos
de menor representação parlamentar, tanto à esquerda como à direita.
Por outro lado, encontrarão explicação para o facto estranho de dois
políticos eminentes e da área do poder - que toda a vida foram
engenheiros civis - terem sido desviados para outros ministérios
(Administração Interna e Agricultura). E quando o Ministério das Obras
Públicas e Transportes foi dirigido por engenheiros civis, ou nunca
tinham exercido a profissão ou desconheciam de todo o segmento de
obras públicas.

Duarte Pacheco era engenheiro electrotécnico, mas rodeou-se dos
melhores engenheiros civis da época e que fizeram escola há até bem
pouco tempo. Ferreira do Amaral colheu os louros do trabalho realizado
por Abreu Freire e Falcão e Cunha, dois engenheiros civis que
perceberam a necessidade de dispor de projectos para as candidaturas
às ajudas de pré-adesão e aos primeiros fundos estruturais (QCA1). E é
preciso que se diga: mais ninguém (para além da JAE) tinha então
projectos como a qualidade necessária para serem aceites pelas
estruturas comunitárias. E foram esses dois engenheiros civis que
criaram as condições para que a Engenharia portuguesa se mobilizasse.

O erro na Alta Velocidade

O que não aconteceu com a Alta Velocidade ferroviária. Há, pelo menos,
quinze anos que a Engenharia espanhola faz, intensamente, projectos de
Alta Velocidade e Velocidade Elevada ferroviárias. Pois nenhum
governante ou responsável português sentiu a patriótica necessidade de
mandar estagiar (mesmo aqui ao lado) uma dúzia
De engenheiros ferroviários das nossas empresas públicas...

Mas tiveram a coragem de abrir concursos de estudos em que se exige
aos portugueses a elaboração de projectos (semelhantes) no valor de
1,5 milhões de euros! Obviamente que os portugueses tiveram de ir
buscar empresas espanholas, porque tinham executado projectos com tal
dimensão... Os média, abanca e a construção só estão preocupados com o
investimento de 12,5 mil milhões de euros... Mas talvez seja um
segredo de polichinelo a negligência do poder político relativamente
às obras públicas e transportes nestas três décadas.

Entregue a condução do sector a quem não tinha competência ou
preparação profissional (basta ver os curricula), assistiu-se a uma
degradação progressiva da competência técnica do país e que fora
acumulada na era Duarte Pacheco. Quando o investimento público pouco
ultrapassava o que seriam hoje cem milhões de euros, o Conselho
Superior de Obras Públicas e Transportes emitia mais de meia centena
de pareceres anuais. Quando o investimento público atingiu montantes
cem vezes superiores, aquele centenário órgão deixou de ser,
praticamente, escutado...

Em suma, descurou-se a análise prospectiva, o pensamento estratégico e
a capacidade técnica endógena. Privilegiaram-se os negócios, os
consultores multinacionais e as concessões, designadamente
rodoviárias. Ninguém quer saber se custem ao contribuinte 6
cêntimos/km quando, na Europa, não passam dos 4,5. É preciso ludibriar
o incauto cidadão de que não há dispêndio do Orçamento do Estado, como
se o privado fizesse, alguma vez, mecenato...

E, depois de tudo isto, o país tem vindo a pagar um preço altíssimo
com o reinado do metro quadrado de solo edificável e os mares da
Califórnia do nosso desencanto. Inverter esta tendência, que se
sedimentou, acentuadamente, nestes últimos 30 anos é o verdadeiro
grande desafio do Governo Sócrates. Daí uma natural expectativa em
conhecer as soluções para a concretização do programa aprovado na AR.
Está-se em crer que a questão da Bombardier tem sentido, conjuntamente
com a reestruturação da EMEF e dentro de um projecto claro para a
indústria portuguesa de equipamento ferroviário. •

Reis Borges, Conselheiro de Obras Públicas e Transportes (Jubilado)
Ex-Deputado da República por Lisboa

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